sexta-feira, 11 de maio de 2012

Desfolhada

Mal adormecera e uma leve mão tocou suas pequenas folhagens. Estava deitada na relva. Folhas secas serviam-lhe de cobertores. Era outono e as árvores despiam-se envergonhadas de suas folhas amarelas, ficavam nuas e expunham suas imperfeições. Assim como elas, o ser humano tem suas estações e tem momentos que devem, ainda que relutante, despir-se de folhas amareladas. Páginas que não fazem mais sentido estarem no  livro de planos, de projetos, de sonhos...
A mão que a tocara insistia que ela despertasse. Esboçou um bocejo, pesadamente abriu as pálpebras e voltou a dormir. Era seu tempo de dormir. Havia despedido suas folhas e agora, desnuda, aguardava em sono leve a chegada da primavera, passara por tempestadas indesejáveis, das quais tentara fugir a vida inteira, mas elas a perseguiam. Trovoadas, rajadas de vento congelantes, raios poderosos tentaram mantê-la presa em algum lugar obscuro de alguma caverna. Aquelas para onde se costuma  fugir quando não se  tem forças para enfrentar as tempestades.
Percebeu que o dono da mão que a tocara, agora sentava-se ao seu lado na relva e pegava carinhosamente sua cabeça,  protegendo-a sobre as pernas. Ele acariciava seu rosto como se quisesse perceber cada imagem, cada contorno. A árvore-mulher parecia, aos olhos dele, muito diferente em essência. O desejo dela era de manter-se dormindo, esse desejo era  maior que o carinho especial que recebia. Mesmo assim, esboçou um leve sorriso e segurou a mão que a afagava, não com desejo de refreá-la, mas de interagir.
Quanto tempo ficara ali? Não fazia ideia... só sabia que antes do tempo que havia estabelecido para acordar, acabou despertando, porque o colo daquele que a acariciava passara a ser indispensável em seu descanso.
Despertou finalmente e sorriu ao ver que quem estivera ao seu lado, enquanto dormia, era um desconhecido. Não sentiu medo, repulsa, nem indignação. Ele transmitia-lhe paz e segurança.
Recebeu-o em sua vida e gentilmente mostrou-se tal como era, sem folhas, com pequenos rebentos nascendo ainda.
Explicou-lhe em  que estação estava e seu agora companheiro parecia entender todo o processo de suas estações.
...
Sentia-se bem todos os dias.
Percebeu que não havia dores em seu coração quando uma quebra em seus galhos era inevitável.
Dividir as dores também era um unguento precioso.
A primavera aproximava-se, seu corpo estava quase completo pelas novas folhas. Uma brisa vinha visitá-los todos os dias.
Notara, entretanto, que ele parecia procurar algo nela. Rodeava-lhe, apalpava-lhe... Ela apenas o olhava e esperava uma explicação.
 Até que, em um momento do dia, sentiu que algo lhe cortava o tronco. Uma dor dilacerante tomou conta de todo seu ser. Não soube se pelo golpe, ou se por quem aplicava o golpe.
...
E ele disse-lhe: _ Não quero mais esperar por seus frutos. Preciso cortá-la  de minha vida.
Agonizante, ela pediu-lhe:
Deixe-me aqui, aqui nasci, aqui vivi. Vá embora em busca de seus frutos. Talvez alguma árvore sazonal alimente sua fome. Eu ainda estou na estação das flores, meu tempo de dar frutos ainda não chegou.

Ele se foi, tão repentinamente como entrara em sua vida.

Ela agora chorava de dor. O golpe desferido doía-lhe tanto quanto a dor secreta da decepção.
Fechou os olhos buscando dormir.
O pavor de tudo se repetir, fê-la esconder-se na caverna e sumir.
Talvez quando o golpe for curado e as dores não mais existirem, ainda que perca toda a primavera, talvez, apenas talvez,   ela saia dali.

Sue Paulino

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