terça-feira, 30 de agosto de 2011

O altar.com

        Ergueu seu altar há alguns anos. Seu mundo, sua fé, sua audácia resumiam-se as vezes que lá subia  e descia. Cada dia esperava um milagre, uma esmola, uma pequena doação, uma reação... Seu ídolo continuava lá, imóvel, passivo, sorriso nos lábios, corpo aprumado, olhos no vazio. Não demonstrava sentimento. Não tinha hálito, não tinha cheiro, não tinha suor, não tinha frio, não tinha ação.
         O coração dela  disparava não se sabia o porquê. Os olhos eram ora nostálgicos, ora felizes e nunca correspondiam  ao que ela  via no altar, pois seu ídolo sem cor era sempre o mesmo.
          Passaram-se os anos e o idolo já amarelado pedia para ser removido. O tempo e o vento arquitetaram um plano e, numa melancolica manhã de chuva, o vento, ajudado pelo tempo, arrancou a fotografia que ainda alimentava aquele altar. A chuva implacavelmente removeu os únicos vestígios ainda deixados pelo tempo. No altar, ficaram apenas o vazio e a moldura de um passado sabotado pela insistência desumana de manter cativo o que não se quer prender.
          A mulher não chorou, não reclamou, nada disse, nada fez. Continuou religiosamente sua caminhada para o altar todos os dias. Esse era o único modo que conhecia como forma de encontrar o que buscava.
        Um dia, alguém curioso questionou-lhe:
_ Por que o altar? Por que a insistência? Por que a rotina?
E a mulher, como se fosse sorrir pela primeira vez depois de tanto tempo, respondeu:

_ Foi aqui que o encontrei pela primeira vez.
_ É por isso que vem aqui  todos os dias?
_ Espero um milagre. Na verdade, venho em busca de meu coração que aqui ficou desde aquela primeira vez.
E mostrou seu peito com um grande buraco coberto de bandagens.



Suerbene Paulino

sábado, 27 de agosto de 2011

O rio e a lagoa

        Nascera por obra do acaso (de Deus) em um lugar remoto, quase ermo. Mantinha-se ativa pelas precipitações pluviais recorrentes naquele lugar, até que um dia as coisas mudaram. A lagoa estava morrendo afogada em seus sonhos e devaneios.
        Definhava-se aos poucos. As chuvas escassas castigavam-na mais do que a supria. A poeira do tempo trouxera-lhe sujeiras e seu brilho não era mais uma atração. Nunca, que se lembrara, havia negado água a ninguém. Animais, pessoas, plantas... a eles, generosamente servia.



        Um veio cristalino ainda teimava em alimentar-lhe, era a única prova de que ainda respirava. Rachaduras rodeavam-na e, no meio da morte, apenas um fio d'agua teimava em estar ali.
         Um dia, um gigante rio, contrariado pelo curso da vida, foi obrigado a estender um de seus braços por aquele lugar. A lagoa acordou mansamente, como quem desperta de uma lenta recuperação. Incredulidade e agonia tomavam conta dela. Havia aceitado pacientemente o dia de sua morte e agora era despertada pelo desejo de viver. O gigante estava indo embora, estava de passagem, mas a lagoa sedenta o absorveu e ele, aos poucos, inundou-a. Foi envolvendo-lhe, suprindo-lhe, despertando o desejo e a consciência de ser lagoa. O veio cristalino misturou-se às águas do gigante. Agora a água da lagoa parece ter uma milagrosa essência de cura, porque  aquela que era uma doente terminal, embora ainda elimine sujeiras de seus "poros" por causa  de seus longos dias de sequidão, demonstra vitalidade e sinal de que ainda vai viver muito com seu rio gigante que misturou-se às entranhas dela.


Suerbene Paulino

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Minhas marcas

         Trago marcas como qualquer ser humano. Algumas estão escondidas, ainda, sob escombros. Outras estão patentes e divididas. Chego à conclusão de que, sem elas, meu rosto não seria real, minha vida estaria vazia e meu presente sem oxigênio. O que move a engrenagem que faz a vida andar são essas marcas. O bem e o mal que nos fizeram, a vida e a morte que nos juraram, o amor e o ódio que nos devotaram, a ingratidão e a benção que nos deram são golpes certos,  marcadores do EU que nos domina.
         Ando ultimamente buscando uma companheira chamada CORAGEM, ela brigou com o MEDO e esse instalou-se aqui furtivamente. O DESTINO deu-me uma muleta para andar. Tenho agora três pernas, uma é emprestada. Quando conseguir meu fôlego de volta, devolverei esse step útil. Importante agora é continuar caminhando, ainda que com exaustão.
        Reporto-me ao sentido de viver e encontro mil razões para estar aqui. Amo a vida, amo o ar, amo-me definitivamente. Minhas marcas são a prova contundente de que não estou aqui por acaso. Fui marcada e marquei muitas vidas. Em algumas vidas, sei que deixei marcas que doeram, embora tenha buscado fazê-las de forma positiva. Que posso fazer, se o instinto de sobrevivência reage nas mais diversas horas?!
        VIVER é tudo de que mais preciso HOJE!

Suerbene Paulino


       


domingo, 21 de agosto de 2011

Secreto



Como todos os segredos, guardo secreto esse sonho entre alguns outros. Talvez esse seja um ponto firme de minha convicção ainda insana em levar adiante o que ficou para trás. Trago em minhas mãos o cheiro único. Raio de sol nevoado,  roubaram parte de mim e não me devolveram. Seria possível dissipar-me assim toda essa esperança?
_ Que esperança? Pergunta-me a vida!
Como uma ovelha, rumino dia após dia o que foi e não foi, o que é, mas não devia ser, o que poderia ser e talvez nunca será...
Que mundo feito de desencontros, meu Deus! Giro-me  e reviro-me, querendo me encontrar. Nem sei onde procuro meu eu, parte de mim extraída.

"Quando se está a beira de um precipício, dar um passo atrás é, na verdade, dar um passo a frente." AD


As duas árvores

No princípio, seu coração era apenas uma terra plana e limpa. A terra era fértil e de tudo que se plantava, crescia e prosperava. Ainda era uma criança e vivia livre pelas campinas. Com o tempo, a seca, as enchentes, as agruras  e as intempéries da vida fizeram a terra  criar também abrolhos e espinhos, por isso era necessário manter vigilância para que essas ervas daninhas não sufocassem o que tinha de precioso plantado no jardim de seu coração. Já era uma adolescente adulta e por isso buscava caminhos certos, atitudes certas, sonhos certos... Mas para sua surpresa percebeu que nada era certo e que a  vida é uma bola gigante e azul, rodando em órbita e que dá muitas voltas trazendo ou separando coisas queridas e rejeitadas.
Já mulher, viu seu coração abrigar uma árvore grande, de galhos exuberantes e raízes fortalecidas. Ela fazia sombra para muitas outras árvores. Amava aquela árvore que nascera tímida e crescera como um gigante. À sombra dela, costumava sonhar, sorrir, dormir e também chorar. Fez dela o centro de seu mundo. Tudo que cultivava no jardim era para realçar o que tinha de belo na árvore.
Esperou o momento dos frutos, mas, mesmo crescida, os frutos sazonais eram poucos, quase escassos. Podia abrigar-se na árvore, mas não podia saciar sua fome que crescia dia-a-dia.
Esperou pacientemente, depois esperou angustiada, por fim esperou desesperada, até que  perdeu a esperança. A árvore, a despeito do que era feito por ela, continuava sem dar quase nenhum fruto.
Chorou copiosamente quando a árvore lhe pediu que a cortasse.
Afastou-se e foi visitar seu jardim que há muito tempo não visitava, ou melhor, não cuidava. A árvore havia tomado sua atenção e percebera que havia sido relapsa com tantas coisas, inclusive com os vizinhos. Tinha gente que precisava de auxílio. Por mais distante que tentasse ficar, a árvore austera se mantinha esguia e ela podia vê-la até quando era noite.
Em suas andanças, sentiu saudade da sombra da árvore e fatigada, voltava lá, sonhava e saía. Sempre olhando com pesar para a velha árvore. Quem sabe um dia ela dá frutos, pensava.
_ Corte-me, insistia a árvore.
_ Não consigo, respondia com lágrimas nos olhos.
Ficava imaginando o que faria ao olhar o vazio que a árvore deixaria se fosse arrancada.
Um forte vendaval arrancou-lhe galhos e feriu-lhe o tronco. Sem nada poder fazer,  viu que, nas raízes da árvore, algo se instalara e a corrompera. Se deixasse a árvore ali, ela contaminaria todo o jardim.
Por mais coerente que lhe fosse arrancar-lhe, seu mundo ainda girava em torno dela, assim, arrancá-la, seria extrair de dentro de si seu próprio coração.
 Afastou-se novamente. Mas a saudade da sombra fê-la voltar  lá.
Diferente das outras vezes, sua atenção voltou-se para uma árvore que crescia feliz ao lado da outra.  Mesmo tenra, já dava sinais de que, na estação própria, daria muitos frutos, já estava crescida e disposta a ali ficar. Uma pontinha de felicidade e satisfação alentou seu coração desesperado e começou a se distrair com a nova árvore. Mas, de vez em quando, ainda recostava-se à sobra do velho pinheiro. Talvez por isso não lhe desse frutos. Sua natureza era apenas para dar sombra, não soubera ver isso.



Suerbene Paulino

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Lembranças

Agora nesse momento, minhas lembranças revesam-se e vejo-o distante de mim, cada vez mais.
Os sonhos um dia sonhados, ensaiados e guardados foram, aos poucos, sendo dissipados e deixando grande desilusão. Há um inacabado em mim. Isso transtorna-me e deixa-me incompleta. Não existem lugares onde eu possa buscar um suprimento para essa lacuna. Seu lugar vazio modificou meu coração. Quem o vê, sabe que falta algo. Procurei fechar esse lugar, mas o que encontrei para isso só o fez mais visível. Inútil querer dissipar o que se tatuou. Marcas são marcas.
Viro-me ao avesso para ver se te encontro entre os escombros de meus sonhos destruídos. Lá onde ainda dói, tento encontrar fagulhas que possam ser removidas para dar-me a paz merecida. Não há como aprisionar o que não se vê. O que sinto é tão presente, tão real, que é difícil aceitar que não seja concreto, que não seja palpável...
Queria que fosse sólido, assim poderia extrair de meu peito o que incomoda. Cadeira cativa, esse sentimento vira e volta faz-se presente, como uma noite tempestuosa, fria e assustadora.

Suerbene Paulino