sexta-feira, 20 de abril de 2012

A bagagem

Era uma tarde fria. O sol recusava-se a surgir majestoso o dia inteiro. As nuvens densas anunciavam chuva. Um vento entrecortava o silêncio do parque. Só ele caminhava cabisbaixo por entre as árvores. Trazia uma bagagem enorme, maior que ele, que era um gigante. Alguém o observava de longe, também por entre as árvores.  O bosque tem esses mistérios. Esconde segredos, esconde amores, esconde surpresas. O semblante do gigante era de cansaço, não somente físico, mas da alma. Parecia que uma mão invisível apertava seu peito e ele, arfando, recostava-se ora em uma velha árvore, ora em uma desgastada pedra esquecida no meio de toda a natureza. Havia nele dor e marcas do tempo.
O que tinha naquela bagagem que carregava com tanto labor? Roupas, livros, toda a sua vida?
Os olhos ávidos que o observavam surgiu agora num aspecto de mulher idosa. Ela o interpelou perguntando-lhe sobre as horas. Ele, gentilmente, respondeu que eram 16:50 e já já escureceria. E fez menção de prosseguir, mas alguma coisa naquela anciã o deteve, ela resmungara algo como: _ A escuridão é ausência de luz.
_ O que disse? Perguntou ele.
_ A escuridão é ausência de luz, falou mais firmemente a estranha.
_ Claro, ausência de luz. Concordou ele.
_ Então, prosseguiu ela, aqui não tem luz, por isso a escuridão logo, logo chegará, mas se nos apressarmos, chegaremos à cidade, aquela   da colina. Tudo lá é iluminado e podemos olhar o bosque escuro lá de cima.
       Ele sentou-se no banco de pedra já carcomido pelo tempo, suspirou e disse:
_ Lá em cima? Não chegarei a tempo, minha bolsa pesa muito e me atrasa os passos. E quanto a senhora, que faz aqui sozinha?
_ É meu ofício vir aqui todos os dias e apontar para pessoas como você a cidade em cima da colina.
_ Como assim, perguntou-lhe o gigante?
_ Sei que prefere, assim como muitas pessoas, enfrentar o frio da noite e a escuridão, abrigar-se em algum lugar obscuro e providenciar um pequeno fogo, além de lamentar sua má sorte. Respondeu a senhora que não mais parecia uma estranha e, sim, um ser iluminado.
_ Pode ser mais clara? Falou com pesar o homem da mochila. Ele realmente estava querendo entender aquela conversa.
_ É simples. O que lhe impede de chegar à colina é sua bagagem pesada. Se me permitir, poderíamos, juntos, selecionar o que poderia ser deixado aqui e o que realmente deveria ser levado. Assim você não precisaria mais ficar em lugares  como esses. Escondendo-se da energia que vibra lá fora, por trás dessa aparente calmaria.
_ Olhe para mim. Disse ele, sem muita convicção.
A mulher o fitou.
_ Não, não olhe para mim, olhe a bolsa, foi isso que quis dizer, veja o que pode ser retirado daqui e me convença. Desafiou o gigante, pensando no quanto outras pessoas tentaram convencê-lo da inutilidade de tamanha bagagem.
_ Não posso fazer isso! Respondeu com rispidez a velha senhora e fez menção de ir embora.
_ Por que não pode? O gigante agora opôs-se à saída da mulher, ficando frente a frente com ela, impedindo-lhe a passagem.
_ Essa bagagem é sua, não minha. Cabe a você decidir o que tirar ou manter aí. Você já se habituou a ela e ela a você. Na hora em que decidir por mudança, abra essa mochila e verá que carregou fardos inúteis por muito tempo em sua vida. Frascos de mágoas, sacos de raiva e vingança, pedaços de autocomiseração, retalhos de inveja, espelhos refletores de sua culpa por omissão ou excesso, páginas rasgadas de capítulos interrompidos, notícias velhas, achados que já cheiram mal...
A mulher, que agora parecia transparente, sumiu por entre as árvores do bosque, deixando-o perdido em seus pensamentos.

Sue Paulino

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Um tempo para o Tempo

Olhei a hora no meu relógio de cozinha. O ponteiro menor estava entre o 3 e 4, o ponteiro maior entre o 5 e 6. Parecia uma sequência programada. Os ponteiros  estavam entre um segundo e outro. Nada certo, nada definido.
Não percebi que o relógio estava parado.
Quando havia parado? Pela madrugada ou à tarde? Não me dei conta, apenas quando necessitei da precisão dele, notei que  havia estagnado. Entre um número e outro, entre um ponto e outro e nada me dava de certeza.
Não podia reclamar do relógio, ele esteve ali todo o tempo em que dele necessitei; e, quando precisou de mim para trocar suas pilhas, eu falhei. Falhei com ele e comigo mesma.
Hoje me encontro estagnada entre um ponto e outro, entre uma reflexão e outra, entre um mundo e outro, entre uma culpa e uma isenção.
Eu e o relógio  precisando um do outro, mas sem tempo para o outro. Ele não me dá seu tempo, nem dou meu tempo a ele, um tempinho apenas de trocar sua pilha.
Terei que ir ao supermercado, passar por uma fila e, o pior de tudo,  teria que enfrentar minha própria inércia. Esta que parece não ter pilha para ela.
Sorte ou sortilégio do relógio que voltará a funcionar a qualquer momento...
Quando eu voltar a viver...








Não me dei conta dessa  mudança em minha vida. Há quanto tempo estou parada? Há quanto tempo me faltam pilhas? Há quanto tempo me faltam sonhos?
O que enferrujou em mim, o que ainda funciona? Temo que essas descobertas devem ser feitas por mim, mas a inércia, ahhhhhhhhh a inércia...

Sue Paulino