sexta-feira, 22 de abril de 2011

Leilão


Não sabia daquele leilão. Navegava madrugada adentro quando, de  repente, viu-se diante dele: um quadro lindo. Parecia que se comunicava com ela. Demorou a dar o lance, porque ainda analisava cada detalhe do cenário ali retratado. Linda colina que se envergava num horizonte contínuo. Um grande rio cortava a paisagem de flores e prados,  répteis selvagens completavam o cenário. Embora, para muitos admiradores, a presença deles  distorcesse aquela inusitada viagem que a arte podia proporcionar, para ela, demonstrava a realidade que toda  paisagem deveria ter .
Ao Sul, uma chácara cor de mel parecia encobrir-se pelos pinheiros altivos e retilíneos que se postavam uniformes, em fileiras tão perfeitas que pareciam alinhadas como um pelotão. Dava-se para ver o sol despontando sob a colina verde e a beleza do canto dos sabiás sibilava em notas musicais coloridas que o artista minuciosamente havia esculpido. Não deveriam estar ali, as notas musicais, mas estavam.
Percebeu um lindo canteiro de girassóis escondidos por entre as folhagens gigantes das palmeiras, pareciam sorrir?!
Encantou-se. Arrematou-o e foi dormir, feliz,  com o sorriso no canto dos lábios tímidos e temerosos por experimentar tamanha satisfação.
No outro dia, quis certificar-se de que não sonhara e voltou ao local do arremate. Tudo estava perfeito. Seu quadro. Compartilhou-o com alguém, com alguns e depois com todos. Não dava para disfarçar o olhar e a fisionomia que a denunciavam. Fora parabenizada e muitos pediram para vê-lo – o quadro.
Ajustou a data do recebimento. Queria estar em casa quando ele chegasse. Precisava ainda arrumá-la para que o lugar devido fosse desocupado, pintado e preparado. Afinal, aquele arremate não era obra do acaso. Havia algo maior que se configurava como uma promessa de anos.
Alguns atrasos ocorreram, mas conseguira, finalmente, recebê-lo, embalado. Abriu com cuidado cada parte que o escondia, porém protegia-o. Com o coração pulsando cada vez mais rápido, pôde enfim tocá-lo. Não havia se enganado em nada, ou melhor, havia. Ele era mais que ela esperava.
Enfim no lugar devido, centro de sua sala.
Um dia percebeu que algo se destoava da paisagem, uma serpente enroscava-se na raiz de uma linda figueira. Tinha ojeriza a cobras, ainda mais serpentes. Por que somente agora conseguia enxergar aquele “detalhe”?
Paciência.
Outro dia... Os girassóis, para seu desencanto, não estavam mais sorrindo.
Alguns meses... O rio estava mudando de cor. As águas cristalinas estavam ficando avermelhadas e... Que horror! Parou... Estagnada, observou que os prados estavam ficando alaranjados.
Passou a mão sobre a paisagem e viu que a tinta que o pintara escapava pouco a pouco formando uma paisagem confusa e distorcida.
Retirou-o do centro da sala e o pôs em um cantinho do seu quarto, escondido por entre as cortinas das janelas.
Ainda não acreditava que precisava jogá-lo fora.

Suerbene Paulino

Talvez


Talvez o espaço cedido em seu coração para a pousada do outro seja algo transitório, com data certa para chegar e ir embora.
Talvez esse desejo de manipular, de rir do outro, seja um estado pueril ou mal, guardado e aperfeiçoado por anos a fio.
Que se esconde em um coração tão obscuro assim?  O desejo egoísta de usar e descartar semelhantes? O direito de se achar juiz para julgar, condenar e executar sentenças àquelas que, desavisadamente, passam por sua vida, atraídas pelo magnetismo de uma personalidade idealizada, cuja aparência você desenhou e coletou de um mundo ficcional?
Observador, você imita aquilo que trará saldos positivos para seu percurso medonho. Mesmo ciente da existência de um Deus, que tudo vê, sua inconstância se corporifica e assume dimensões assustadoras.
Quem vai fazê-lo parar? Quem vai “brecá-lo”? Você parece uma máquina desgovernada ou um bicho que segue o instinto, e só!
Talvez eu esteja a desenhar-lhe o que você teima em não ver, teima em esconder ou que eu teimo em julgar...
São conjecturas para as quais não encontro respostas ou respaldo. Isso rodopia meu senso e investe nessa desordem que abomino.  Talvez a capacidade de desestruturar-me dessa forma venha de você e eu não suporto estar tão vulnerável a um ser que não se revela tão humano, ou pelo menos cristão como deveria.

Suerbene Paulino